quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Por aí a cantarolar

        Volta e meia quando passo por alguém de idade, mas assim bem velhinho mesmo, fico tentando imaginar tudo o que pode ter sido visto no decorrer daquela longa vida. Se houve mais felicidade do que tristeza, se houve muitos amores, sofrimento, desilusões, se foram anos pacíficos ou agitados demais, se existem arrependimentos, se mágoas seguem guardadas, se algo teria sido feito diferente...
         Eis que na semana passada passo no mesmo dia por uma senhora pela manhã e por um senhor ao fim da tarde e reparo que ambos estavam a cantarolar. E tem demonstração maior de bem estar do que alguém andando na rua cantarolando? Para muitos, a velhice traz consigo uma boa cota de rabugisse, uma redução catastrófica no potencial de paciência e no de delicadeza também, enquanto isso, por algum motivo alguns se escapam, e simplesmente andam por aí assim, dando a impressão de possuir um escudo inabalável, e deixam escapar por entre os lábios quase que o tempo todo alguma agradável musiquinha.  
         Lembrei da minha avó materna, que passava o dia a murmurar agradáveis sons de musicas que geralmente eu nunca tinha antes escutado, e digo que dessa história acho até que eu conhecia bons capítulos... Minha vó me cobrava a ausência de um namoradinho em meados dos meus 15, argumentando que no tempo dela, nessa idade, já tinha feito revista dos guris de Triunfo (nessas palavras), contava histórias de noivos deixados pra trás, de aventurinhas juvenis escondida dos pais, fuga de casa pra morar em outra cidade, de uma infância à beira do rio. Casou-se, procriou (felizmente, permitindo minha existência aqui), enviuvou, e depois de anos reencontrou e teve longo relacionamento não com apenas um, mas dois ex-namorados de muito muito tempo atrás. Sempre deixando claro a importância pra ela da independência de se cuidar sozinha, o não gostar de pedir atenção ou ajuda dos filhos, ou netos, ou de quem fosse. Talvez não chegasse a mim os mínimos detalhes, mas até onde via, tudo era resolvido da maneira mais simples, prática, e os problemas que eram recebidos com um "Jesus, Maria, José" aos poucos se dissolviam com presteza e a tranquilidade reinava novamente na testa raramente enrugada, e tudo isso, claro... cantarolando!
         Faço muito na vida pensando na coleção de histórias que pretendo ter a relatar aos meus netos. Só torço para chegar lá com uma inspiração parecida, com uma coleção que também valha à pena ser escutada repetidas vezes, e com a mesma energia que vejo de vez em quando em senhorzinhos e senhorinhas por aí, que seja tão positiva que não cabe lá dentro, tem que ser expressa constantemente através de um sonzinho sutil, sonzinho de bem viver.

2 comentários:

  1. Prima, lindo texto! Impossível ler sem sentir a presença da nossa querida Vó Cema... é como se sua música cantarolada viesse aos ouvidos novamente, trazendo à tona as mais doces lembranças em meio a saudade que todos sentimos... A Vó Cema certamente é um espírito de luz e deve estar em algum lugar muito especial olhando por todos nós.

    Bom saber que ainda existem "senhorzinhos e senhorinhas" capazes de carregar suas bagagens (sejam elas boas ou não) e continuar com alegria de viver, pois acredito que aqueles que cantam são felizes, transmitem amor e paz...

    Assim como você disse, tomara que Deus seja generoso conosco para conseguirmos driblar as situações adversas da vida e envelhecer "cantarolando", mantendo acesa a chama da alegria e acima de tudo valorizando a vida.

    Um beijo grande.

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  2. Obrigada, Karyna. Lembrei imediatamente da vó quando cruzei coincidentemente por essas duas almas "cantarolantes" em momentos diferentes do mesmo dia.
    Fico bem feliz que tenha gostado do texto e que tenha te feito lembrar também da alegria contagiante da Ceminha.
    Beijão

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